Um Fantasma no Trem – Parte 8

 

 

CONTINUAÇÃO) …que se deu e passou a perscrutar o pátio da ferrovia desativada… As instalações resistiam ao tempo e intempéries.

 

O que fora as oficinas de vagões resumia-se a dois galpões, modestos, com valas para facilitar a manutenção. Eram em madeira de lei, que estavam já bastante desgastadas – talvez, construídos em caráter provisório, mas “eternizaram-se”… Pareciam esperar apenas uma centelha pra incendiar-se. Estavam afastados, acima da estação uns cem metros (estavam, portanto, a “meio caminho” da Rotunda). Mais por perto, havia duas caixas d’água do tempo das “vaporosas”. Uma em alvenaria, exagerada, de uns cinquenta mil litros (um marco daquele local, como a maior que se tinha notícia em toda malha nacional) e uma mais antiga, metálica, bem menor, com inscrições em inglês – que Ananias depois tentou ler. Esta última,  via-se, estava cheia, pois escorria um fiapo de “água enferrujada” de um lado dela.

 

Quanto à antiga Rotunda, da plataforma da estação via-se uma parte de seu telhado curvilíneo – ela que ficava a uns trezentos metros dali, indo para o fim do pátio (portanto, em sentido contrário à serra). De frente a eles, ou de frente à estação, na ponta curta da plataforma, estava a estaca de KM com o número “0” (zero). Marcava o ponto inicial da autônoma ferrovia que nascera ali e, dali, estendera-se para ir se conectar à malha nacional em mesma bitola (portanto, não nascera “ramal” aquela ferrovia – ramal tornara-se posteriormente).

 

Ananias viu que tinham preocupação para com a “estaca zero”, pois do trilho que a sustentava saia uma grossa corrente, que era soldada aos trilhos do pátio.

 

No lado da Central (a ferrovia de Donadon), no que dava para ver dali, eram bem menos as instalações. Uma caixa d’água metálica, de formato cilíndrico, com alvenaria de sustentação acompanhado o formato dela até o chão; Um galpão grande sem aparente utilidade… Não havia (e nem houvera) oficinas de locomotivas ou vagões. Era indicativo de que Serra Branca sempre fora, para a Central, um reles ponto secundário.

 

A ruidosa locomotiva cor de fumaça se foi, levando as outras, e as conversas foram retomadas… Ananias já chegava de volta.

 

Os aposentados falavam agora que não havia esperança quanto à reativação de seu trecho, pois havia notícias de barreiras caídas e aterros fugidos principalmente na serra e boatos de que pelo percurso da linha afora, em Minas, já havia cercas delimitando terrenos a cruzar os trilhos. Depois falavam sobre obras de terceiros que, por ali mesmo, já invadiam o domínio da ferrovia.

 

Recordaram, também, de um período em que havia maior esperança de reabertura do ramal; Fora período em que um auto de linha sempre vinha dos lados da linha tronco e percorria o trecho, o que se dava umas três vezes por semana… Depois passou a ser uma vez por semana e, depois, numa “chuvarada de dezembro”, o mesmo ficou preso entre duas barreiras… e nunca mais apareceu ali.

 

E, assim, iam os aposentados, “picotando” e intercalando assuntos, que surgiam sempre atrelados a outros. Tudo sempre referente à sua desprezada ferrovia; E não só falavam de serviço e “máquinas”; falavam, também, de falecidos colegas de serviço.

 

Citavam-nos, fazendo questão de lhes frisar os nomes e suas, digamos, proezas. Lembraram-se  de um maquinista de nome José Pinto, que viera de certa Bom Jardim. Falaram de sua caligrafia, perfeita e bonita que “causava inveja” – aos agentes de estação. Lembraram-se de um  agente de estação, ‘Zé’ Nascimento, que, religioso, sempre “benzia” a placa da “estaca zero” em “menção” à ferrovia; Lembraram-se de  certo manobrador Nezinho (diziam né-zinho) que, aposentado por invalidez, depois do fechamento da linha, vinha sempre àquela reunião trazendo “notícias boas” de reabertura do trecho; notícias “quentes”, diretamente da Regional Belo Horizonte.

 

E, novamente, pararam a conversa. Dessa vez não houve um motivo aparente. Não havia locomotiva funcionando por perto. Ananias inquietou-se. Queria ouvir e ouvir, mas teve que esperar.

 

Todos os aposentados, cada qual com seu trejeito e sem combinar nada, passaram a olhar em direção à serra, onde suas locomotivas, um dia, cantaram nos trilhos; onde deixaram sua fumaça impregnada nas paredes dos túneis de lá. Os trilhos, enferrujados, sobre dormentes apodrecidos, seguiam em direção a ela; Sumiam, depois de uma curva longa. Curva que, por um lado, estava delimitando quintais de casas e, pelo outro, margeando uma rua calçada com pedras… Olhavam, como que combinado, em silêncio triste.

 

Ananias aproveitou o ínterim e passou a observar melhor parte dos recursos utilizados para que houvesse um mínimo de intercomunicação entre as duas ferrovias de bitolas diferentes. Via de perto, a linha em arranjo de trilhos, que era chamada de bitola mista.

 

A “solução” bitola mista estivera empregada ali, em Serra Branca, apenas no sentido local de “entroncamento”; estivera disponibilizada em apenas uma única linha do pátio dos aposentados (as demais linhas paralelas eram apenas em bitola métrica).

 

No entanto, fora suficiente para atender àquele sistema que funcionou com poucas cargas. Possibilitava que vagões de ambas as ferrovias fossem estacionados, lado a lado, porta a porta, e “baldeavam-se” os sacos com mercadorias ou minérios. A carga que começava viagem num vagão, terminava em outro. A baldeação, ali, fora feita por trabalho braçal; tudo “na mão”.

 

Linha em bitola mista é a linha que possibilita ter, numa só grade de trilhos, a bitola larga (1,60m) e a bitola estreita (ou bitola métrica – 1,00m); as duas bitolas que estão em nossas ferrovias. Enfim, é a colocação de um terceiro trilho junto aos dois trilhos “de lei”, para possibilitar o tráfego de trens de bitola diferente numa mesma via – cada um a seu tempo.

 

O que induz, acertadamente, tratar as nossas duas bitolas ferroviárias operacionais pelo superlativo bitola larga e pela “redução” bitola estreita é o fato de existir uma bitola intermediária às duas, chamada bitola padrão (ou normal, ou Standard, ou universal)… Trata-se da bitola de 1,44m,

 

A bitola normal/padrão/Standard/universal de 1,44m é a bitola única adotada na maioria dos países ditos de primeiro mundo. Por exemplo, toda a malha de carga do Canadá e EUA são em bitola de 1,44m, bem como o mesmo se dá em grande parte dos países europeus. Não por acaso, todo Trem-bala, de qualquer dos países que o possui, desliza em cima de dois trilhos separados 1,44m de distância um do outro.

 

Naqueles países, a decisão por uma bitola normal/padrão/Standard/universal de 1,44m (na verdade 1,435m – equivalente a 4 pés e 8,5 polegadas) se deu ainda ao final do século XIX, tanto na Inglaterra quanto nos EUA onde, antes disso, imperava a bagunça das bitolas diferentes.

 

Pois bem, nós estamos no século XXI e continuamos com duas bitolas… e vai continuar assim por muitos séculos dos séculos.

 

Nossa triste linha em bitola mista é o “elemento chave” – jamais falado – do Custo Brasil. E ela remete a uns dos motivos de o país não ter um transporte ferroviário de carga à altura de suas dimensões territoriais. Ora, a bitola mista encarece o sistema e causa controvérsia e confusão ao se procurar construir novas linhas.

 

Somos reféns do terceiro trilho. Ele é eterno para  nós, brasileiros – ainda que insuficiente no contexto. Se tentar melhorar um pouco o nosso sistema férreo, mais terceiro trilho se terá. Mas ele é a única maneira de minimizar os estragos da pluralidade de bitola – e, matematicamente, dobra os custos de uma ferrovia, tanto na construção quanto na manutenção. Um terceiro item acrescentado onde apenas dois já teriam que ser suficientes, certamente vai onerar.

 

Uma unificação de bitola ferroviária é necessária, mas, para nós, é impossível e, ainda, traria muita indecisão. Ora, tanto nossa errada bitola larga quanto nossa errada bitola estreita são consolidadas  e, optar por uma ou por outra, ainda estaria errado – afinal ainda não seria a bitola certa – a bitola padrão (de 1,44m).

 

É tarde demais para unificar a bitola ferroviária no Brasil. Perdemos, mesmo, o “bonde da história” (perdemos o trem da história).

 

Mas, o lamentável fato de o país ter duas bitolas operacionais não exatamente tirava o sono de Ananias. Isso porque proporcionava situações inusitadas na ferrovia.

 

O caso é  que o assunto bitola ferroviária brasileira cansa o ferroviarista” e ele prefere não “enfrentar” o assunto. Prefere curtir as “estranhezas” que surgem para atender ao imbróglio. Que “estranhezas”?

 

Em qual outro lugar do mundo é necessário acrescentar mais rodas motrizes a locomotivas comuns em padrão americano, deixando-as mais alongadas (e mais exóticas e apaixonantes) que o comum? Ora, trata-se de antiga prática isolada de algumas ferrovias brasileiras, mas está, continuamente, em expansão.

 

Entendamos, primeiro, que locomotivas em padrão americano são aquelas do tipo que rodam pela ferrovia de Donadon – a Central (gigantes de quase duzentas toneladas). As mesmas utilizadas nos EUA, em sua bitola padrão/universal (1,44m)… Sempre tivemos, em nossa bitola métrica, locomotivas também americanas, porém máquinas menores e bem mais leves, feitas com exclusividade para nossa grande parcela em linhas mais frágeis e tortas.

 

Pois bem, para atender melhor a bitola estreita brasileira ocorre, cada vez mais, a prática de “alongar” as locomotivas originárias de bitola padrão; para que possam, de modo mecanicamente articulado, receber dois eixos motrizes a mais. Tudo visando a adaptar e permitir dois quesitos: fazer distribuir melhor (e suportar) o peso de locomotivas “mundiais” sobre uma bitola mais estreita e possibilitar o aproveitamento da potência estipulada por seus “grupos-geradores”, uma vez que motores de tração de bitola métrica são menores, portanto, menos potentes que os motores de tração usados na bitola padrão.

 

A maioria das ferrovias de bitola métrica, no pós-privatização, já se preparavam para passar a usar locomotivas de oito eixos, transformadas a partir de locomotivas de seis eixos, usadas comumente na bitola padrão.

 

Já, para atender a nossa desvairada bitola larga, ocorrem procedimentos mais simples; um pouco menos onerosos, evidentemente. Apenas troca-se (ainda em fábrica ou mesmo depois de usadas) os truques de bitola normal/padrão (1,44m) por truques de bitola larga (1,60m).

 

Mas, em suma, a pluralidade de bitolas é fator de atraso, mas o “maluco por trem” é flexível em tudo no relativo a trens e tem como ainda curtir as estranhezas advindas desse atraso – curte, entusiasmadamente, as locomotivas “esticadas” para receber oito eixos.

 

E Ananias via a linha em bitola mista e meditava:

 

Se, de um lado, a bitola estreita (1,00m) além de não possibilitar estabilidade satisfatória (como é consenso) e ainda fazer aumentar os gastos para se conseguir uma relação equilibrada entre potência e equipamentos nas locomotivas  padrão americano, por outro, a desvairada bitola larga (1,60m) certamente é onerosa se comparada à bitola normal/padrão/Standard/universal (1,44m).

 

Ora, na bitola larga, o motor das locomotivas tem de fazer “mais força” (portanto rende menos pra arrastar um mesmo peso), gastar mais combustível – para vencer o “arrasto” proporcionado pelos incríveis 16 centímetros a mais… E, claro, “dá-lhes” mais necessidade de lastro à via férrea, mais comprimento em dormentes – e mais custosos redimensionamentos em “materiais rodantes” já estabelecidos por fabricantes mundiais.

 

E Ananias fazia “reflexões”: não éramos lá um país de muita sorte no quesito ferrovias – não mesmo!

 

Tem-se que, tanto bitola larga quanto bitola estreita, são  a parte “visível a olho nu” de nosso atraso em ferrovia. E, admitamos, vê-las numa linha em bitola mista faz, mesmo,  doer os olhos e a alma… Apesar de que ela nos é o único “remédio” possível.

 

Mas até o que é sério por um lado, pode, por outro, gerar gracejo… Ananias riu muito (mas riu chateado – não façamos força pra entender) quando, certa vez, sua velha avó, moradora de cidade com linhas em bitola larga, o surpreendeu com considerações negativas e desdenhosas à “redinha de linha fina” da cidade em que ele residia…

 

Portanto, não se pense, jamais, que a infeliz “medida diferente de linha” em nossas ferrovias passe despercebida. Não mesmo. Por ninguém.

 

Ananias já se inquietava com o silêncio triste dos aposentados, quando iniciou conversa o que tinha nome de Teófilo. Era ex-maquinista, negro de uns 75 anos ou mais, muito alto e magro, estava de pé – e assim preferiu ficar para falar – apoiando-se, quase trêmulo, numa bengala. Passou a contar aos colegas – talvez pela enegésima vez – como certa vez, em manobras naquele pátio, usou suas pernas compridas para pular longe e se safar sem aranhão, quando uma  “Diesel do bitolão”, apelidada de “espanta-demônio”, bateu e desmanchou de vez seu fiel Mikado “de montagem alta” – sua locomotiva a vapor. E apontou na linha mista, o local exato da colisão. Acrescentou que a “Rede” lhe dera outra Mikado igual, “sem tirar nem por”.

 

Sim, deram-lhe uma segunda Mikado, também “de montagem alta” e, desta, tinha até fotografias… Começou a procurá-las no bolso longo da calça de tergal – por sinal, era das antigas calças do uniforme. Enquanto procurava, começou a falar sobre as netas que, recentemente, haviam ganhado medalhas esportivas no ginásio. Sempre lembrava que a família era “cheia de medalhas” e tudo se dava por sua “genética das pernas compridas”… Em um momento apenas tratava desse assunto, e os outros o respeitavam.

 

Depois, falou um  certo Dick. Fora manobreiro (manobreiro era “nova” denominação do antigo “guarda- chave”); beirava a uns cinquenta e cinco de idade. Era, de fato, o mais novo entre aqueles, e não se sentava nunca. Limitava-se a reservar uma ponta do banco, na qual apoiava, de vez em quando, um dos pés e gangorreava o corpo. Dick pareceu a Ananias um veterano e decadente ator de fotonovela. Estava metido numa camisa jeans de manga comprida, desabotoada na altura do peito. Um peito cabeludo tal que mal deixava ver um reluzente crucifixo que, por sua vez estava sustentando por corrente também reluzente. A calça jeans, desbotada, estava bem alinhada e estava presa por um cinto de largura acima da média: Também deixava à mostra alguma corrente reluzente saindo do bolso – talvez de antigo relógio… Por sinal, não trazia relógio de pulso; talvez porque portasse alguma pulseira e anel. Nos pés um sapato bem lustrado e via-se que calçava meias bem escolhidas. A barba lhe estava bem feita no queixo quadrado, o que fazia destacar mais suas costeletas – ainda que estrategicamente curtas. Trazia fartos cabelos lisos caprichosamente penteados para trás, pouco grisalhos e com “pé” irretocável. Para completar, estava portando inseparáveis óculos escuros que, segundo os colegas, fora comprado nas “feiras de Aparecida do Norte” – cidade que não ficava longe dali.

 

Dick contou que, certa feita, ao pegar uma carona na Central, fora na cabine de uma Biriba. Como na cabine não havia banco para ele, dispuseram-lhe – aqueles maquinistas do “bitolão” – a segunda locomotiva para que pudesse viajar, então, sentado. Porém, não conseguira concluir passagem por dentro do estrado interno junto ao motor daquela locomotiva, tal foi a quantidade de “línguas de fogo” que saiam do motor ou sabe-se lá de onde e “passeavam” por sobre sua cabeça. Teve, então, que voltar à cabine e fazer a viagem em pé mesmo.  Encerrou sua fala com um demorado sorriso largo em que exibia um dente circundado por ouro. Depois de falar, fez um chiste e olhou para um   certo Vitor Rosa – o único que lhe fora solidário e receptivo…

 

Dick sabia que não agradara à maioria dos colegas, pois, falara alguma coisa da Central e não da ferrovia “deles”. Esses outros, por sinal, entreolharam-se, fazendo gestos de desprezo com as mãos – parecia que o manobrador lhes era como um filho “rebelde”.

 

Mas Ananias gostou; ouviu falar na sua Biriba, a locomotiva que, mais cedo ou mais tarde, iria procurar na localidade denominada Tubarão… e torcia pela continuidade dos casos.

 

Dick acabou de falar e teve palavra, o ex-mecânico Sérgio Martire, de uns 65, baixo, branco de nariz adunco, cabelo nos ombros como na juventude e óculos fundo de garrafa. Acenou para ajudar a voz contida e rouca e começou a falar – “de novo” – sobre quando acompanhou uma “experiência” com locomotivas na serra… Começou apenas.

 

Foram interrompidos por um agente de estação da Central, devidamente uniformizado, que saíra de suas dependências de serviço e viera “serelepe e saltitante”, em direção a eles. O agente, rapaz novo, tinha algo a dizer – como era esperado. Trazia um assunto bastante diferente.

 

Começou a falar em tom moderado, como se estivesse cochichando coisa sigilosa, chamando a atenção para si… Ananias, que tinha ouvidos abertos para tudo da ferrovia, ficou atento. E, falou o rapaz: “Pessoal, Donadon, o tal maquinista que gosta de ‘inventar a roda’ está aí. O homem está inquieto, chegou de um pernoite ‘brabo’ e não foi nem pro alojamento dormir… Desta vez, vocês ficam mesmo, de vez, sem o seu girador de locomotivas. Podem ir se despedindo. Desta vez, o Girador de vocês vai mesmo para Lauriano… E olha, o restaurante de lá, ele já conseguiu interromper de vez as obras… O pessoal de lá está furioso”.

 

Dito isso, foi embora, ainda “serelepe e saltitante”, sem sequer esperar algum comentário.

 

Houve trocas desconsoladas de olhares e o único a “manifestar-se” com a “notícia” foi o ex-manobrador Dick. Ajeitou o raiban com seu cacoete de empurrá-lo contra o rosto com o dedo indicador, meteu de novo o pé em cima do banco de revezamento e disse: “Deixa comigo, vou passar no ‘terreiro’ da vila Cruzeiro, na sexta. Aquele magrelo vai ver”… Teófilo, que se tornara “crente evangélico”, fez um trejeito ao ouvi-lo falar em “terreiro”; os outros apenas se olharam de soslaio… e riram todos. Aquilo de “passar em terreiro” era balela do ex-manobrador “metido a galã”. Todos sabiam que tinha medo até de imagem de santo quebrada.

 

Quanto a Ananias, ficou “grilado”. Entendera a “advertência” daquele agente de estação. No entanto, ainda lhe era um mistério o porquê da “proposta” do maquinista Donadon de retirada do girador de locomotivas do pátio desativado e removê-lo para Lauriano – foi o que falara o agente “saltitante e serelepe”. Falara, também, na obra parada do restaurante de Lauriano – relacionando-a a Donadon… Aquele maquinista tinha algo a ver com o restaurante de obras interrompidas e também algo a ver com o girador de locomotivas da ferrovia desativada. Por sinal, ouvira os mesmos assuntos lá na escala de maquinistas de Lauriano. E sempre que ouvia aqueles assuntos, parecia, para ele, estarem “num só balaio”.

 

O que teria um girador de locomotivas em uma cidade, um restaurante sendo construído em outra,  a ver com o maquinista Donadon? Precisava “pesquisar” melhor, apesar de que, também “inventor da roda”, já começava a vislumbrar uma explicação.

 

Já, entre os aposentados, que sabiam da “intenção” de tal maquinista em remover dali o girador de locomotivas “deles”, não havia unanimidade.

 

Alguns não concordavam, pois achavam que aquela engenhoca era-lhes a “chave” para a volta das atividades daquela ferrovia; achavam que era espécie de “chamariz” (perguntou-se por muito tempo, nas fases intermitentes de fechamento do ramal: “mas, e o girador?”)… Principalmente, defendiam mantê-lo ali, porque, caso a ferrovia fosse reativada (sonhavam), haveria de se trabalhar com locomotivas  Diesel cada vez maiores e, nesse caso, far-se-ia necessária a permanência dele ali.

 

Outros, em seu íntimo, até que gostariam que tal mecanismo fosse reativado noutra ferrovia; seria como um “fígado” ou “coração” doado… Mas nada falavam. Não lhes era totalmente clara a conversa de que havia risco de levarem dali o seu girador de locomotivas – não havia nada de oficial. Tudo que até ali ouviram sobre o assunto, era em forma de chiste e desdém, e envolvia o tal “maquinista magrelo” – ao qual, parecia, não davam ouvidos.

 

Enfim, os aposentados não tinham como tirar alguma conclusão. Ademais, se, quanto ao imbróglio, ouviam críticas severas de trabalhadores da ferrovia que seria “beneficiada”, tudo fazia intuir que, por parte deles (os da ferrovia “prejudicada”), tinham mais é que ficar calados.

 

Quando o serelepe agente se foi, começou a falar (“autorizado” pelo mecânico aposentado, que não quis mais falar) aquele a qual chamavam Canário. Tinha uns 75; ex-maquinista, branco “descascado”, olhos – que, via-se, eram azuis – fechados ao menor sinal de claridade. Tanto que as pálpebras já não levantam bem e o forçava, cada vez mais, a inclinar a cabeça para trás, para enxergar. Contou – após solicitação dos outros – o caso que presenciara quando esteve a “reforçar o quadro de tração” por uns tempos noutro “depósito”, longe dali, na extensa ferrovia que se formara após a – disse – “Rede”.

 

Lembrou a todos que fora transferido para Ibiá (cidade de Minas quase nas alturas do triângulo mineiro), “sob  promessa” de ter retorno a Serra Branca dentro de um ano e ser promovido, enfim, a maquinista. Lembrou-se,  primeiro, de que o “negócio era feio” por lá, nas “bandas do Ibiá”; que era um trem atrás do outro, sem descanso, “sem perdão”… e, por lá, queriam “segurá-lo”. “Deram-lhe máquina boa” e até uma das casas melhores, mas não conseguia se acostumar ao lugar e temia pela “serviceira” que teria pela frente… Então, teve que “fugir” de volta a Serra Branca; “Fugir mesmo!” – reforçou. Numa folga, juntara o que pode e voltara, sem a ninguém avisar nada… Disse: “Vim-me embora e me apresentei  aqui… O chefe do depósito ficou doido… Cheguei a ficar à toa, perambulando na escala por duas semanas… Depois me deram escala de serviço… e a promoção”.

 

E, enfim, contou um dos casos que presenciara por aquelas longínquas instâncias. Assim:

 

“Era junho e eu estava pernoitado e esperava, tomando sol na plataforma da ‘estação do Ibiá’, a hora de fazer o almoço. Então, vi quando uma ‘consolidez’ chegou ao ‘depósito’ rebocada por uma ‘francezona’… É verdade, a ‘consolidez’ tinha sido baleada pelo maquinista dela; tinha bala na fuselagem toda… O maquinista dela estava na plataforma, vendo a máquina dele chegar rebocada. Era um homem alto e ‘parrudo’, mas de voz fina. Gostava de cabelo grande e andava encurvado. E ele falava agitado a quem estava na plataforma, como que querendo justificar alguma coisa; como que querendo se desculpar… Em alguns momentos até chorou, aquele bruto homem. Ele dizia: ‘meti chumbo’ mesmo… Não viajo mais com essa mula; quero outra ‘máquina’. Não quero nem cruzar com ela no trecho”… E, continuou Canário: “O homem era um ‘servição’, bom funcionário. Era maquinista de ‘quarta’ há muito tempo e queria melhorar… ‘pegar mais um galão’. Queria também ‘melhorar de máquina’. A ‘consolidez’ dele era das primeiras inglesas que vieram; dava um problemão danado. De hora para outra parava de fazer vapor, outra hora não conseguia arrastar nem o tênder, e ele vinha sofrendo com ela no trecho… Todo mundo estava chamando  ele de ‘amarra trecho’. Então, naquela viagem fatídica, passou a noite ‘de graça’ num desvio, aos pés da ‘serra do tigre’, com a locomotiva empacada, a troco de nada, vendo todo mundo passar pra lá e pra cá… Não conversou. Passou a mão num revólver e mandou chumbo na locomotiva… O chefe do depósito era bom; recebeu-o e compreendeu o drama. Deu a ele algumas folgas acumuladas – tinha mais de dois meses –, passou para ele uma ‘pacífica americana’ das baixas e o promoveu para ‘terceira’… Melhorou bem”. E concluiu: “Sabem como é, não é?… Na ‘estrada’, quem não chora…” – e todos completaram – “Não mama”.

 

Terminado o caso que todos ouviram atentamente, tomou palavra o Vitor Rosa – o que apoiou Dick naquela conversa sobre a carona na Central. Vitor Rosa fora maquinista e tinha uns 60, pelo jeito. Era negro “liso”, com pouco cabelo branco. Portava um bigodinho e era – segundo os colegas mais velhos – tal qual o manobrador Dick: “metido a boy”. Vitor lembrou a todos que a “mineirada” quando chegava no trem cambaleante da “rede mineira” (a sua ferrovia), assustava-se quando passavam para a outra plataforma e davam de cara com a linha larga da Central. Disse que se afastavam muito da beirada da plataforma, espremendo-se na parede, quando passava o “trem de aço” com as Biribas ou com os trens Húngaros. Lembrou-se de que aguardavam, geralmente, os expressos que não eram menos assustadores em sua chegada com as Canadenses à frente. Segundo ele, a mineirada, acostumada ao “ruim, mas vai” de suas tortas linhas, afastava-se, porque tinha medo de ser “sugada” para cima dos trilhos, com o vento que aqueles velozes “trens paulistas” faziam e traziam…

 

Todos o ouviam, mas não acharam graça, mesmo porque, da turma toda, só ele e Canário eram dali – paulistas. Os outros vieram de ramais de ferrovias que foram erradicados em Minas… Terminou de falar e buscou apoio em Dick – que não lhe deixou na mão. Mostrou, demoradamente, o dente circundado de ouro… Canário, paulista, permaneceu  sério, em respeito aos mineiros ali.

 

E, enfim, todos sabiam que Vitor Rosa gostava mesmo era da Central. Era o único que se virava nas passagens dos trens de lá e ficava de olho nas imensas locomotivas a rodar pelo “bitolão”. Teófilo, orgulhoso de sua “rede mineira” sempre “torcia o nariz” quando Vitor Rosa “enchia a bola” da Central e passava a chacoteá-lo, chamando-o, entre outras, de “paquerador barato”… Entendiam-se tão bem que quase se podia ver pai e filho ali. E, de fato, o tal Vitor Rosa, pareceu a Ananias, ser pura molequice para cima do amigo mais velho – que, não raro, tirava a bengala do chão e mirava-lhe. Mas o que faziam era sempre trazer mais bom humor a todos.

 

E o veterano maquinista gostava sim, da Central. Tentou, o quanto pode, uma transferência dentro da REFESA, mas não conseguiu. Passou a vida se misturando – popular que era – aos maquinistas “de lá”. Quando, nas conversas ali, ouvia algo como: “E a sua bitolinha, como vai?”, não gostava do “sua”, e respondia: “Minha não, é nossa. Estamos separados por balaio, mas a mesa é uma só; apenas trabalho lá”… Sua transferência não veio, mas era o mais feliz entre os aposentados do grupo, afinal, “sua” preferida ferrovia, ainda ativa, preenchia o vazio deixado pela que trabalhou.

 

Depois tomou a palavra e iniciou a conversa, raspando a garganta, um  certo Caramuru. Era branco, baixo, magro; beirava uns 70. Fora maquinista das pequenas Baldwin, de bitola reduzida, em São João  Del Rey.

 

Antes de falar naqueles lados, levou o olhar a Dick, que também viera do lugar. Em respeito às suas origens, trocaram cúmplices trejeitos e olhares, como se aludissem a outro mundo; Um mundo incomparável e inalcançável; incompreensível a quem de lá não proviesse (os outros entendiam)… Caramuru estava ainda vestido com uma “demorada” blusa de lã e ela ajudava a encorpar a frágil figura. Relembrou do serviço com as bitolinhas e falou, de quando fora foguista, dos mergulhos de meio corpo, inevitáveis e inadiáveis – ou então o trem ficaria parado – nas caixas d’água da linha tronco  entre São João Del Rey e Divinópolis… Era sempre um “banho” frio – com o corpo quente – que tinha que tomar pra remover do fundo de algumas caixas, a tampa ou “rolha” que se soltava da haste na hora de abastecer as bitolinhas – aquilo, lembrava, veio a “prejudicá-lo” até a presente data, pois tinha uma tosse insistente que o visitava todo inverno. Passara, em São João Del Rey,  “uma vida”, aguardando a “melhoria” nas caixas d’água… que não veio – “antes acabou-se a estrada” e ele viera transferido para ali, Serra Branca… Encerrou a conversa raspando a garganta.

 

Acabou de falar e, novamente, sem que se pudesse detectar um motivo, a conversa cessou de novo. Todos, em silêncio, voltaram a olhar em direção à serra. O caminho de seus trens ainda estava lá; Os três túneis pequenos, o “grande” da “divisa”. O que teria se dado com o pontilhão do “km 6” que vinha já “balançando”? Já teria perdido a cabeceira? Estavam de olhar pousado nos trilhos que iam para o colosso; A locomotiva que imaginavam apontando e apitando jamais surgiria. Sorte que havia ainda os trilhos velhos a dar-lhes direção ao pensamento.

 

Ananias também olhava e mesmo sem ter participado daquele passado, era possível imaginar um trem surgir ou sumir de vista em meio à fumaça e vapores… Nunca mais! Uma estrela cadente, com seu risco momentâneo no eterno céu, teria sido mais demorada em sua investida que aquele trem.

 

O silêncio estava demorado e os aposentados continuavam mirando os trilhos… Dick, em seu cacoete conhecido de empurrar o raiban contra o rosto com o indicador, desta vez passou rápido o anular por baixo da lente – uma lágrima quase o denunciara.

 

O momento lhe deixara mais triste porque ainda não tinha se conformado com a morte do manobrador Nezinho – o colega que sempre vinha às “reuniões” trazendo notícias boas de “reabertura do trecho”. Nezinho se aposentara antecipadamente, por invalidez, pouco antes de a linha fechar. No entanto, depois do fechamento da linha, comparecia àquela “reunião” toda data marcada. Os aposentados aguardavam com ansiedade sua chegada – sempre atrasada. Nezinho tinha história singular – fora manobrador, assim como Dick, mas, quando na ativa, trazia sempre consigo um boné de maquinista… Falava sempre numa promoção a ajudante de maquinista – que nunca viera. A tal boné não desprezara nem depois de “encostado por invalidez”; Vinha com ele para o encontro semanal. Todos o viam vindo, ao longe; Vinha pelejando, mancando duma perna, tentando não balançar o corpo.

 

Todos sabiam, já ao vê-lo vir, o grau de otimismo em que se encontrava – o boné é que dava a dica. Vinha com ele debaixo do braço e, quando já estava próximo, punha-o na cabeça; Depois tirava de novo, depois repetia os gestos. A cada vez que manobrava o boné, corria a mão nos cabelos prendendo-os atrás da orelha, pois que mais concentrado de um lado, sempre estava pronto a escapar em razão do andado desengonçado. A permanência daquele boné cinza – queimado de sol – sobre a cabeça é que dava o tom de otimismo ou não das notícias que trazia. Se, na chegada, demorado na cabeça a ponto de dar tempo de cumprimentar a todos e iniciar conversa, então estaria trazendo até recortes de jornal com notícias de reabertura do trecho. Se iniciasse conversa com ele debaixo do braço, então não tinha muitas novidades.

 

Trazia tais notícias dos lados da capital mineira, pois é para onde viajava “fazendo bico” como “acompanhante de caminhoneiro”. Eram notícias otimistas que incluíam datas de reativação da linha, contratos de cargas novas que vinham para “intercâmbio duradouro com a Central”. Garantia, muitas vezes, até a data da chegada de uma locomotiva ou trem… Também, “adiantava” notícias – deixava sempre a garantia de que, na semana seguinte, traria notícias diretamente da Regional Belo Horizonte. Animava a todos e ia embora antes deles, mancando com pressa… O boné voltava sossegado, debaixo do braço.

 

Assim era aquele colega, que em certa reunião marcada não compareceu. Foram ver e souberam que “morrera dormindo”; Já estaria “duro”, quando ao amanhecer do dia. Morrera “agarrado” ao desbotado boné de maquinista que, então, ficara até difícil de lhe tirar de entre os dedos – ao qual deixaram que assim permanecesse e fosse enterrado com ele. Depois da morte dele é que os aposentados sentiram que sua ferrovia fechara mesmo, de vez, as portas… Mas resolveram, também, que se encontrariam enquanto fosse possível.

 

Já se aproximava a hora do almoço quando, mais uma vez, se preparava para falar o Teófilo. Ele se levantou e tirou do bolso algumas fotografias de “seu tempo”. Os colegas se juntaram a vê-las. Era ele quem tinha mais “recordações” do tempo de serviço; Tivera um parente fotógrafo e fizeram algumas fotografias. Em algumas estava sozinho, noutras acompanhado, mas sempre com “sua” – segunda – Mikado “de montagem alta” a fazer fundo. Nas fotos, via-se que era o único que se destacava, com seus  mais de ‘um e noventa’ de altura, ao lado das rodas de mais de metro e meio de sua estupenda “máquina a vapor”.

 

Olharam as fotografias e, após, Teófilo as guardou de volta.  Do outro bolso tirou um velho relógio; O mesmo com o qual, em toda a carreira de maquinista de primeira, “controlava” as chegadas e saídas das estações nos trens de passageiro. Olhou… (CONTINUA)

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