Um Fantasma no Trem – Parte 12

 

 

(CONTINUAÇÃO) alcançara… Por sua vez, “nariz de pimentão”, ao ver a múmia apresentar sinais vitais, eliminou uma de suas muitas preocupações.

Com sua “agudeza” para os trens, Ananias não perdia um semáforo sequer; observava que estavam todos “abertos” (ou verdes)… E pensava. Havia, então, como a situação ser pior do que aquela que se apresentava; um sinal fechado poderia significar um trem à frente, na mesma linha.

 E “nariz de pimentão” foi olhar de novo os vagões. Ananias também foi ver. Já faziam desprender conhecida fumaça azulada, sinal de superaquecimento de algumas rodas… Ora, uma “aplicação total” em freios de vagões (a qual alguns daqueles vagões “aceitaram”) é pressão usada para parar um trem; para imobilizá-lo… Não para suportar uma velocidade daquela. Algumas sapatas estavam “apertadas” ao extremo, com pressão para fazer parar um trem que estava, na verdade, aumentando de velocidade.

Os maquinistas não falaram entre si, mas passaram a considerar:  as sapatas aguentariam o tranco até ao menos chegarem ao balanço “das bananeiras”? Certamente estavam já a perder eficiência e ainda poderiam se desintegrar com o calor extremo aliado à constante fricção… Aquele pensamento fez com que “cabelo de cortina” descruzasse os braços e retirasse os óculos. Quanto a “nariz de pimentão”, sentou-se normalmente por uns instantes e colocou a “cabeça no meio das pernas”. Depois foi andar pela cabine (preocupando Ananias) e disputava lugar com ele ao  para-brisas  central. De tempos em tempos, ia fazer o “rearme” do botão do sistema de vigilância, evitando, assim, que o sistema de ar de freios dos vagões fosse jogado em “emergência”.

Por falar em “emergência”, a escuridão do túnel não lhes cegara, afinal, descartaram a opção “emergência”. Como vimos, puseram os freios a ar dos vagões em “aplicação total” – não deram “emergência”.

A propalada “emergência”, uma reserva de ar comprimido – em reservatório separado de cada vagão – que possibilita um acréscimo de força (um “extra” de aperto) sobre as sapatas de freio do vagão, não é uma coisa mágica; tem seus limites de “emprego”. Um trem com sistema de ar de freios de vagões incompleto como estava aquele – tanto que o levou ao “disparo” – não terá uma “emergência” eficiente; O “despertar” da – individual – válvula de emergência de cada vagão, poderia não se dar em todos eles… da mesma maneira que não se dera a “aplicação total”.

Também, a “emergência” tira do circuito, de vez, o freio dinâmico… e, como vimos, contavam com a volta dele no declinar da velocidade, quando por sobre o balanço “das bananeiras”.

E o trem ganhava as curvas e cortes de uma maneira longe de ser imaginável pelos maquinistas. As locomotivas e sua imponência traduzida em quase duzentas toneladas de peso cada uma, já eram apenas frágeis brinquedos nas mãos daquela mais de quinze mil toneladas de carga em disparada, procurando acomodação.

A linha, no entanto, suportava o trem; as curvas todas o aceitavam… Conquanto, a velocidade era crescente e, a certo ponto, a grade predominantemente sinuosa de trilhos, com um trem de quilometro e meio forçando pra que se tornasse, por inteiro, uma reta, começou a emitir um ranger indescritível…  A sequência de curvas e cortes, ora abertos e arborizados, ora fechados e estreitos, fazia com que a trovoada do trem alcançasse o ranger da grade de trilhos e se misturassem – e tudo era propagado ao ar e ao longe.

Era só parte daquilo que os maquinistas ouviam de dentro dos limites da cabine…  Mas, de repente, tiveram que se perguntar o que vinha ouvindo o cidadão que se revelara à frente do trem, correndo em disparada ao lado da linha, sem saber se olhava para trás ou para frente. Tentava,  o sujeito, sair de um corte longo, para se afastar o que pudesse do caminho do “leviatã”, que vinha em situação extraordinária.

O cenário se deu rápido para quem estava no trem. O homem corria, segurando um chapéu por sobre a cabeça e, à frente dele, iam três bois grandes… Além um pouco do grupo, um jovem esperava próximo a uma porteira aberta. Da trilha que havia saído o homem e os bois até a porteira de espera, não era muito o espaço a percorrer… E havia ali, então, certa manha cotidiana. Estavam acostumados a invadir aquele espaço, sempre ocupado por comboios férreos comportados. Mas o trem de minério estava rápido demais naquele dia e foram surpreendidos.

O homem do chapéu, ao ver que o trem já passava por si, foi jogar-se deitado numa cava no barranco, enquanto que o jovem na porteira, no instante seguinte, evaporara-se. Quanto aos bois, dois fizeram de subir o barranco e, “perdidos” perante a ameaça que os alcançava, se retiveram em remoinho. O outro fez de atravessar para o outro lado da linha e avançou. Porém, escorregou nas britas e tropeçou nos dormentes, chegando a bater de peito num dos trilhos da via férrea… no momento exato em que a locomotiva chegava até ele. Resultou-se que fora cortado precisamente ao meio, onde a metade frontal foi subitamente tragada pela boca de aço, enquanto a outra parte elevou-se a uns três metros de altura, rodopiando e esguichando sangue e excrementos – que tomaram um dos lados da locomotiva líder… E o trem corria tanto que nem a mistura de odores que aquilo deve ter provocado entrou para a cabine.

Quanto à tripulação, viram tudo, inclusive às evidências do impossível corte cirúrgico, mas nem se entreolharam.

Tudo o que lhes prendia os sentidos, era torcer para que o balanço “das bananeiras” segurasse o trem. Caso não segurasse, teriam ainda os dez quilômetros de declive/abismo pela frente… Se, sob  influência dos vagões freados, o trem não parasse no balanço “das bananeiras”, não haveria mais salvação. Independente de as sapatas de freio “aplicadas” virarem  pó ou não, o trem tombaria, com certeza, após ele.

Por sinal, era um “alivio” àqueles, saber que seu trem, se não parasse no “santo” balanço, tombaria no ermo da serra… Porque aos pés da serra começava o conglomerado urbano. Ao mesmo tempo tinha-se,  pelo meio, os trens elétricos suburbanos.

Contavam, enfim, com o balanço “das bananeiras”, aliado à volta de ação do freio dinâmico. Estavam, como que um pacote de ingredientes, entregues à lei da física. E esses ingredientes teriam que manter-se  os mesmos. Não poderia haver alteração alguma nesses ingredientes… Mas perigava haver.

É que, lá embaixo, próximo ao “pé” da serra e nas cidades, desabava forte chuva… Por onde percorriam com o trem desgovernado não chovia; a linha estava seca. Os trilhos e todas as rodas do trem estavam secas. O conjunto trem/via “cantava” em longos silvos de aspereza. Nesse caso, havia forças de atrito “ideais” na fornecida frenagem; sem travamento ou deslizamento de rodas. Com todo o conjunto seco, sem interferência de graxa, óleo ou água, qualquer frenagem dada é mais eficiente. A água da chuva faz bem ao trem quando se tem um “conjunto equilibrado”, mas, naquele caso tinham algo fora de qualquer especificação.

Uma eventual chuva forte sobre aquele quilométrico trem “mal freado” e, consecutivamente, sobre a via férrea, faria aumentar – e muito – a velocidade do mesmo. Por dois motivos: primeiro (e de pouca relevância), a carga dos cento e trinta e oito vagões se encharcaria, aumentando o peso deles. Segundo (e de muita relevância) a água da chuva alcançaria o contato das forças de frenagem – rodas/sapatas/trilhos – e traria desequilíbrio a essas forças.

Uma chuva forte molharia de imediato os trilhos e começaria a atingir rapidamente as rodas dos vagões. Faria diminuir o atrito de frenagem (com ou sem travamentos de rodas sobre os trilhos), fazendo o trem desembestar ainda mais. A água (chuva) e seu poder insistente de “infiltração” perde pouco – nessa situação – para qualquer lubrificante proveniente de petróleo (coisa que, veremos ainda, Ananias considerava bastante). Evidentemente, não poderia chover de jeito nenhum por sobre aquele trem desgovernado… Aqueles maquinistas, já candidatos a subir no mesmo podium em que subira o maquinista “Nick Lauda”, teriam que ter essa sorte.

Se aquele trem de quase dezesseis mil toneladas, disparado morro abaixo, ia ou não parar no balanço “das bananeiras”, aproveitando o fato de que os trilhos e as poucas rodas freadas estarem secas,  era uma incógnita. Porém, se chovesse por sobre o trem e a via, com certeza passaria direto pelo balanço. Passariam  “macio”, sem trancos ou arrancos.

 Sabiam disso e rezavam em silêncio velhas rezas esquecidas.  Pediam a Deus que segurasse a chuva por algum tempo – quanto ao trem, estava por conta da física.

No entanto, enquanto viam aquela conhecida paisagem passar de maneira tão indesejável, nuvens carregadas já escondiam, mais demoradamente, o sol, fazendo parecer que o dia ia virar noite por ali.

A velocidade, naquele momento, talvez fosse de duzentos quilômetros por hora, pois o ranger da linha virou uma só trovoada. Cada curva “aceitava” o trem, mas, sob forte  clamor. Foi quando à frente, na Linha 1, avistaram, em sentido contrário, outro trem – o que sempre assusta, em razão da proximidade das vias… O comboio estava parado e saia-lhe conhecida poeira por baixo das locomotivas – era poeira de areeiros “ativados”. É que tal trem fora imobilizado sob “aplicação de emergência” – ocorrência que aciona o areeiro, automaticamente.

A porta frontal da locomotiva líder dele estava aberta. Na maçaneta da porta dianteira da cabine havia uma bolsa de couro dependurada. Estava de “boca pra baixo” e, entornado pelo estrado curto, estavam roupas, uma marmita e outros objetos pessoais. Certo que fora, abruptamente, retida pela alça, escapando de seu portador, em fuga. Por sinal, não se via ninguém da tripulação… Avisados pelo CCO sobre o “minério” desgovernado na linha ao lado, procuram distanciar-se – não apenas com aquele curioso “olhar de distanciamento” da tripulação do trem anterior.

Voltando ao nosso “trem bala”, teria arrancado da composição de vagões vazios do trem parado, frondosa nuvem de poeira enferrujada, não fosse o fato de tais vagões ainda estarem escorrendo água da chuva que tomaram alguns quilômetros abaixo. Suas caçambas, no entanto, não só começaram a “dançar”, como refrataram a espécie de clamor ininterrupto, que refletia o flagelo do trem desgovernado.

A velocidade do trem desgovernado era descomedida e faltavam ainda longos quatro quilômetros para o final daquela primeira parte do declive/abismo e, consequente, início do balanço “das bananeiras”. Na cabine da locomotiva, já não havia espaço pra se pensar a quanto estavam se desenvolvendo. Apenas “gostavam” já da velocidade, afinal ela traria, em breve, aquele “santo” balanço.

Estavam duros e olhavam fixos à frente quando se deram da aproximação de outro túnel – um túnel estreito. Era um túnel curvo, de linha única e pequena extensão… À porta dele, viram que um bando de urubus se amontoara sobre os restos de uma volumosa carniça.

Foi quando, de modo súbito e com agilidade surpreendente, a “múmia” se deslocou de seu banco e se jogou de cócoras ao chão, se escorando numa lateral da cabine, tapando os ouvidos e fazendo careta. O “homem esmeralda” demorou, mas entendeu. Agachou-se, quase sentando, e apoiou as costas ao painel de comando… Ananias que não era bobo fez a mesma coisa. Seria uma tremenda “explosão” de deslocamento de ar e, ao mesmo tempo, algum agourento catartídeo daqueles poderia, ao ser “atropelado”, romper algum para-brisa e adentrar violentamente a cabine.

E não deu outra.

Junto ao estrondo do deslocamento de ar, um urubu, ao menos, estilhaçou um dos para-brisas centrais e ganhou o interior a cabine, enquanto vários deles tiveram menos sorte… Eram mortalmente lançados contra as paredes internas do túnel e remetidos de volta à ferragem do trem disparado. Quanto à locomotiva, ao pegar o túnel, balançou para os lados a quase rabiscar as paredes e depois estabilizou-se.  O ar, antes parado dentro do túnel, foi abruptamente “soprado” – a sabe-se lá quanto “por hora” – e fez pular para fora, na boca de saída, um perfeito cogumelo horizontal de poeira vermelha… Cogumelo que, em seguida, foi impiedosamente descaracterizado pelo trem.

À saída do túnel, os dois maquinistas já forçavam tosse, tentando remover das vias aéreas a mistura de carniça e poeira velha de minério, enquanto que, com nojo, tentavam se livrar de um urubu que, mesmo estrebuchando, transitava pela cabine em meio às suas bolsas… Dotado de trejeitos indizíveis, “cabelo de cortina” o agarrou e lançou pela janela, enquanto voltava a se jogar no assento do auxiliar. Quanto a “nariz de pimentão”, ao ver o ato heroico do companheiro, assumiu uma “postura de combate” ao “comando” – o balanço “das bananeiras” já não estava longe.

Estavam tensos e não precisavam de mais nada para baixar suas expectativas, mas, naquela “reta final” ainda surgiu um motivo a mais de preocupação. Pingos de chuva fizeram círculos do tamanho de uma laranja ao baterem nos para-brisas que restaram inteiros…  Tal fato fez com que “nariz de pimentão” brincasse de removê-los – por dentro… E, felizmente, tudo ficara só numa breve pancada.

Mais uma curva – em que as locomotivas pareciam ter feito com mais dificuldade que as outras e tomaram uma curva menos fechada; esta, “enfeitada” de bananeiras nos dois lados das vias… Era o início do balanço “das bananeiras”.

O “condutor” foi ficar de olho no velocímetro, enquanto o trem se incluía naquele precioso desacelerador propiciado pelo acaso. Sabiam que os poucos vagões que vinham freados assim continuariam e exerceriam grande retardamento na velocidade, ao percorrer uma linha nivelada e sinuosa… Faltava pouco para começar a aparecer algum resultado.

E o trem avançava, “rinchando”, pelas seções em curva. A locomotiva fazia curva para um lado, fazia curva para o outro e o ponteiro do velocímetro – talvez “depois de um século” – se descolou do “pino de delimitação” e marcou confortáveis “110km/h”. O maquinista “nariz de pimentão” – que voltara ao amarelo e se estabilizara nele – passou a pisar no pedal de acionamento dos areeiros das locomotivas, fazendo aplicar areia dos reservatórios no contato roda/trilho – era um pedal “alto” e barulhento, e pisá-lo ruidosamente parecia trazer esperança… Queria ele, garantir aderência total o quanto antes, à provável entrada ou volta do freio dinâmico. Já, “cabelo de cortina”, que resolvera ficar de pé, segurava entreaberta a porta da frente, olhando o chão veloz, enquanto que, com a outra mão, apertava sobre o estômago.

O trem ocupava já metade do balanço e estava ainda rápido demais. A velocidade estava pelos “noventa por hora”. Viam que a chuva não chegaria a eles de imediato, mas viam que não tardaria.

 Passaram a contar com, ao menos, relativa diminuição de velocidade para pularem do trem – passaram a considerar tal possibilidade… Se o trem não desse indicações  claras de que iria parar sob influência daquele balanço, talvez optassem por executar procedimentos bastante singulares, antes de pular dele – talvez: dariam um “tapa” na “alavanca graduada” jogando-a na posição de “trem em marcha”, visando soltar os freios nos vagões aplicados e tirariam fora, também, o freio dinâmico. Depois, aplicariam o freio independente das locomotivas para evitar que o sistema de vigilância jogasse o sistema de freios em “emergência” – tudo, visando a assegurar que o trem, livre totalmente dos freios dos vagões, tombasse mais à frente, naquela segunda parte do declive/abismo… antes, então, de atingir a cidade.

Enquanto isso, lá no CCO, todos viam que na secção exata do balanço “das bananeiras” houvera relativa demora de troca na posição das tarjas no painel, o que indicava velocidade mais baixa do trem.  A tarja não deveria passar para a secção imediatamente à frente indicando ocupação, pois ficaria evidente que o trem não parara e estava ainda disparado… Todos olhavam para o painel com as pernas duras.

No trem, o balanço “das bananeiras” ia sendo percorrido e a velocidade caíra para “animadores” 70 quilômetros por hora km/h”… Era muito ainda, mas os colegas chegaram a rir um para o outro – talvez por ser aquela velocidade conhecida deles em outras situações. Era gradativa a queda de velocidade e, a seguir, o freio dinâmico começou a dar as caras e a provocar encolhimento dos para-choques, o que certamente aumentara mais ainda o otimismo… Mas foi momento em que, ainda, tiveram que passar por outra circunstância de tensão.

É que um urubu (outro sortudo urubu, não dantes revelado) saiu de seu recôndito recolhimento e levantou um sofrível voo, tentando sair da cabine… mas,  não conseguiu. Chocou-se e voltou ao assoalho. Porém, de tão apreensivos que estavam no momento, os tripulantes ignoraram-no. Olhavam o velocímetro, viam que o ponteiro já descia resolutamente e os olhos ficaram grudados nele. O grande leviatã se deslocava ainda descontroladamente, mas, com forças efetivas de frenagem e reverso se sobrepondo a seu deslocamento, marcou confortáveis 55 quilômetros por hora, com tendência clara a diminuir mais, nos hectômetros seguintes… E era interessante, afinal, o balanço, ao menos para as locomotivas, estava chegando ao fim.

Tinham mais uma curva longa pela frente e depois viria uma reta em que já se poderia notar a declividade da linha – o fim do balanço… e continuidade do declive/abismo.

A última curva do balanço “das bananeiras” foi sendo percorrida, cada vez com menos ênfase, enquanto o freio dinâmico começava a dar as caras, já proporcionando arrancos e encolhendo mais os para-choques do trem…  Ao final da curva a velocidade era de 40 quilômetros por hora e, em razão da direção do vento que se dava, o “rinchado” dos freios dos vagões era escutado por eles e trazia mais conforto.

 A locomotiva líder concluiu a curva e já tomava a reta de começo do declive/abismo; mergulhando nele…  O visual não era dos melhores; não naquele momento. Da cabine via-se a linha à frente em reta, e claramente o “mergulho”. O trem ainda seguia para ele, e todas as locomotivas já se encontravam mergulhadas na descida forte, mas a velocidade já era bem baixa. O trem ia parar… com certeza.

A situação fora de expectativa atroz tal que “nariz de pimentão” – já retornado para o tom vermelho – quase quebrava o pedal de acionamento do areeiro de tanto dar-lhe pisadas “bombeando”… Isso com um dos pés. Com o outro, segurava aquele urubu de última hora, esfregando-o mortalmente contra o assoalho.

Não admira que, naquela situação, não se lembrara de aplicar logo o “freio independente” das locomotivas, pois já podia e… devia. Devia, pois a composição se “estacou” de vez e o freio dinâmico saiu, também, de vez. O resultado foi que os para-choques das locomotivas, antes encolhidos, estiraram-se, ao mesmo tempo, deixando as locomotivas “livres” para irem em frente, para, em seguida, se estacarem “impiedosamente”… A estacada foi tal, que fez desprender de vez os extintores de incêndio, que rolaram com estrondo pelo chão da cabine.

“Nariz de pimentão” que estava de pé, entre o painel e o seu banco – onde agora, sem movimentos, parecia jazer aquele urubu – foi lançado de costas contra o painel e alguma alavanca lhe pegou com força as costelas. Fechou, então, os olhos, num contorcido de dor e procurou, tateando, o manipulador de freio “independente” das locomotivas – para “aplicá-lo”… Já, “cabelo de cortina”, se segurara melhor e voltara ao seu banco, e ainda apertava o estômago pra aliviar alguma cólica.

O trem estava, enfim, parado – a linha estava parada. Nenhum movimento, nenhum trepidar. Barulho, só o dos motores acelerados, “esquecidos em freio dinâmico”.

As folhas das bananeiras indicavam que um vento forte começava e os pássaros já tinham dificuldade em continuar a bicar os frutos – maduros… Tal cena dos pássaros parecia inacreditável ao decomposto e pálido maquinista de olhos fundos que continuava lembrando uma múmia. Tentava consertar a armação dos óculos, e a experimentava mirando as pequenas aves. O outro, com a cor rubra já recuperada e ainda “com pernas”, desceu da cabine… não  sem antes ouvir, pelo rádio, que não deveriam, em hipótese alguma, movimentar o trem – já estaria vindo para o local uma equipe de supervisores de locomoção para dar continuidade à viagem do comboio.

Quem, com dificuldade, foi ao rádio para responder, foi “cabelo de cortina”. Garantiu que estavam parados e viu (ouviu) que por lá, no CCO, comemoraram como se estivessem assistindo a um jogo de futebol, com gol, da “seleção canarinho”.

Ananias, inquieto, foi para fora da  cabine, para olhar para onde se dirigia “nariz de pimentão”. Ele já se deslocava pela Linha 1 afora, em direção aos vagões do trem, para apertar, “em garantia”, alguns dos freios manuais estacionários deles. Dava passadas esquisitas o maquinista camaleão, mal conseguindo manter-se dentro do limite daqueles dois trilhos tão espaçados… e, antes que terminasse de apertar a segunda catraca de freio, sua roupa já estava ensopada. É que uma chuva pesada desabou de vez e o dia virou noite.

A água da chuva chegou rápido às sapatas e rodas dos vagões. Daquelas que estavam incandescentes, desprendeu um vapor denso e surgiu na serra um espetáculo – sem testemunhas – de coluna esbranquiçada que, de certa forma, ainda tentava transportar para as alturas a forma sinuosa da linha.

Na cabine, “cabelo de cortina” permitiu-se ficar tombado à janela aberta, com parte do corpo para fora, sem se importar com a chuva. Nada o faria deixar de contemplar o chão, então parado, por alguns momentos… Nem mesmo o ordinário urubu, gosmento e alquebrado, esquecido, por dado como morto, que já ensaiava alçar voo novamente.

O maquinista deixou-o se rebater; Não queria fazer nada, nem pensar nada… Apesar de que, sua mente, insistia em trazer-lhe de volta o momento esmeralda do colega…  Mais tarde, confessaria que passara a acreditar piamente em “marcianos”, e que seriam, mesmo, verdes.

O fantasma, por sua vez, sentia algo como um nó na altura do pescoço… Não sabia se descia ou se ficava no trem… Acompanhou, porém, os movimentos finais daquele  urubu. Viu quando ganhou a porta aberta da frente da cabine e caiu, sem esboçar voo, direto para as britas da linha, parece que, sossegando-se de vez.

E, enfim, ficaram por ali, até serem substituídos.

Já em casa, “cabelo de cortina” encontrou seu relógio de pulso. Estava junto à canela, dentro de uma das meias que calçava… Posteriormente, mudou de função. Foi ser agente do CCO.

Quanto a “nariz de pimentão”, encontrou o seu quando já tinha se esquecido dele…  em uma outra viagem, em que precisara de suas diversas luvas de reserva.

                               Capítulo 6

                   O cemitério de locomotivas

            Era um “cemitério de locomotivas”. Havia locomotivas de diversos tipos. Havia locomotivas acidentadas, de aquisições recentes, que serviam para fornecer peças a outras na ativa. Havia locomotivas dessas, acidentadas também, mas que voltariam à ativa. E havia antigas locomotivas, obsoletas, encostadas por não mais serem úteis à ferrovia.  O propósito de tal cemitério era abrigá-las até que, um dia, de acordo com sua situação, pudessem tomar rumo condizente. Como não havia data marcada para um eventual retorno delas às linhas, podia-se supor que, ao menos no caso das locomotivas antigas, simplesmente iriam passar por um processo de lenta “desintegração”… para, assim, serem “apagadas” aos poucos.

Tal “cemitério de locomotivas” formara-se, desordenadamente, em torno de um antigo e importante centro ferroviário, à medida que a localidade – chamada Tubarão – perdia importância no contexto de carga ferroviária, pois, por aqueles lados, a rota de carga dos trens se tornara secundária, em razão da construção de linhas variantes mais modernas nas proximidades, enquanto que as linhas mais antigas passaram a ser usadas por trens de subúrbio.

Ananias chegou ali, ao “cemitério de locomotivas” de Tubarão, já na parte da tarde. Antes, se perdera, enquanto tentava compreender o entroncamento de trens de carga e trens suburbanos que se dava nas proximidades. Estava à vontade no “cemitério“, afinal, não havia ali atividade alguma. O silêncio que pairava, por sinal, contrastava com a “natureza” própria das recolhidas. Era incomum ver tantas locomotivas reunidas sem espirros de ar, sem zunidos, sem a “sinfonia” dos motores… Ananias não tinha pressa, pois, o sol da tarde, de um dia que se apresentava extremamente limpo, clareava bem, por baixo das tantas coberturas existentes ali.

O “cemitério”, em si, era uma grande área irregular em seu formato, cercada por muros altos; Sua vizinhança consistia de velhas indústrias. No interior dele, além das filas de locomotivas, havia conjuntos de galpões antigos da ferrovia; tudo já “não operacional”. Eram grandes galpões de oficinas conjugados com anexos e adaptações; almoxarifados e lavadores desativados e até alguma plataforma de estação pelo meio. Surgiram em épocas e situações diversas e não seguiam um padrão de organização ou estilo. Havia galpões com coberturas em laje, em amianto, folhas de zinco e também alguns em telhas de barro… Com esta última se dava um galpão maior, talvez o principal. As telhas dele estavam já desarranjadas e deixavam passar pelas frestas a luz do sol, onde se via melhor aos fragmentos suspensos de poeira. Eram fragmentos da terra esbranquiçada e areenta do local – como a de um leito seco de rio. Talvez, por isso, a vegetação ali estivesse contida.

Eram muitas as coberturas, mas não eram ainda suficientes para abrigar as tantas locomotivas que estavam ali. Então, metade ou maioria delas, estava ao relento.

As máquinas ocupavam todas as linhas dentro do “cemitério”. Havia linhas dentro dos galpões, com travessões e chaves de direcionamento. Havia, também, linhas fora deles, pelo meio e beiradas, havia pedaços de linhas feitas em separado só para sustentar algumas das desprezadas locomotivas. Havia locomotivas sem os truques, colocadas sobre “fogueiras” de dormentes. Também havia locomotivas simplesmente colocadas no chão, com ou sem rodas… Quanto a estas últimas, eram as locomotivas elétricas – Ananias encontrou as elétricas – retiradas de circulação em pleno funcionamento. Havia um aglomerado delas – para  elas não havia chance alguma de volta.

Em relação às locomotivas  Diesel, havia bem mais de uma centena. De antigas e obsoletas “manobreiras” a  locomotivas imponentes de última geração.

Os muros altos não deixavam ninguém entrar nem ver nada. Portões enormes em barras de ferro foram “emparedados”, alguns “chapeados”, e os trilhos, sob esses portões, estavam parcialmente enterrados no chão de terra esbranquiçada… Havia um portão de entrada e saída para veículos ferroviários, mas era acorrentado de modo que só a ferrovia, com suas pesadas ferramentas podia movê-lo. Havia, também, um portão pequeno de acesso, mas estava, igualmente, bem acorrentado. Do lado de fora dele, havia uma guarita de guarda.

Nas imediações do “cemitério” havia, de fato, as indústrias e outros depósitos; Era uma área tipicamente industrial, mas vinha silêncio de lá, também – devia ser um domingo, analisou Ananias… O que quebrava o silêncio era apenas o rodar longe de veículos por uma rodovia nas imediações. O resto era silêncio que chegava a convidar a dormir.

Pois bem, ninguém entrava. Mas os jornais e revistas, por sua vez, queriam fotografias; queriam “mostrar”. Mostrar as aquisições novas que estavam “canibalizadas” e mostrar as elétricas desativadas (das quais, algumas, “estavam em caixotes, ainda” – afirmava-se).

Ananias teve, naturalmente, fácil acesso ao interior do “cemitério” e aproveitava o silêncio do local… Como vimos, o dia anterior fora-lhe barulhento, por demais, a bordo de um trem cargueiro desgovernado numa descida de serra.

Ananias via as antigas locomotivas, já inservíveis, e via as novas, então “quebradas”. Ia andando, beirando as filas de locomotivas e sentia-se deslumbrado e indignado ao mesmo tempo. Era tão só um ordinário espectador que entrara para ver um jogo… depois  do apito final. No entanto, tinha consigo um propósito claro: queria ver a Biriba, a locomotiva que mais o “impressionou”; era uma “coisa de criança” – a viu pela primeira vez quando ainda criança. Sabia que ela estava ali. Queria vê-la; estava ávido… Mas, controlava-se; Deixaria que ela simplesmente surgisse à sua frente.

Estava na área descoberta, onde começara sua perquirição; Punha-se a escolher um lado em que pudesse, depois, “fechar o círculo”.

Ia andando pelo “cemitério” e pensando no fato de como parecia ser um sonho aquela situação pela qual estava passando… Mas, não era um sonho, pois que não aconteciam coisas sem sentido. Tudo seguia exatamente o curso normal, como para todos. Ia, então, dar de cara com a Biriba. Estaria ela ao relento ou debaixo de alguma cobertura? Parecia depender de “pura sorte”.  Poderia estar simplesmente na linha cheia de “máquinas” que se revelaria já ao lado da que percorrera ou, então, estaria por baixo das coberturas diversas dos galpões, lá onde ainda não tinha ido.

Enquanto pensava, deteve-se nas locomotivas elétricas que viu na área descoberta e foi vê-las de perto. Havia ali imensas (conhecia nomes e apelidos) Russas, Metroviques, inglesas, Siemens, V-8 e outros tantos modelos mais. Todas elas, em sua curta “carreira”, rebocaram muitos trens de passageiros e também cargueiros… Eram elas, sinônimo de modernidade, mas seu emprego fora por breve período. Dado o que representavam e “prometiam”, pode-se dizer que as locomotivas elétricas, se levado em conta o curto tempo de uso delas nas ferrovias, foram algo como um tiro livre, que produziu barulho muito mais longo que a própria trajetória do projétil… Ananias não tinha como não sentir um vazio sem explicação; Quem não o sentisse pela ferrovia em si, o sentiria, ao menos, por admiração ao porte gigante de tais locomotivas.

A maioria delas estava simplesmente colocada no chão, fora de trilhos, com rodeiros enterrados na terra areenta. Viu uma Russa com algum mato em volta e uma goiabeira saia-lhe pelo vão dos vidros de uma das cabines… Temeu por sua Biriba.

Havia elétricas também em cores diferentes – que trafegaram por outras ferrovias de bitola larga. Ananias procurou, e não viu em nenhuma delas, as placas de classificação ou identificação; apenas havia o sinal de onde foram retiradas da carroçaria. Ananias andou em meio àquelas locomotivas por algum tempo e depois escolheu um lado e foi em direção aos galpões cobertos.

Pegou a seguir uma fila de locomotivas Diesel, entendendo-se sempre minúsculo entre elas. Delas, o cheiro de graxas e lubrificantes vinha mais forte. Viu que eram máquinas novas, das mesmas que puxavam os trens de minério. Eram muitas U23 e muitas SDs, acidentadas e aguardando reparos. Reparava os amassados das latarias, a ausência de faróis e de partes da carroçaria e chassis; sentia pena ao ver motores e geradores incompletos. Tudo aquilo, aliado ao desbotamento das cores delas, cada qual num tom, deixava-as ainda mais exóticas – algumas, fantasmagóricas. Viu que muitas delas estavam “marcadas”, pois envolvidas com uma fita recentemente colocada – talvez a pedido da Nova Ferrovia que chegava… Entrariam em operação após reforma ou reconstrução.  O mesmo teria acontecido com as locomotivas da ferrovia de sua região,  privatizada  dois anos antes.

Achou, depois, as pequenas pioneiras Diesel, das quais, alguns  modelos, havia visto só em fotografias e, fitando-as, ficava imaginando como deveria ser o barulho de seus motores – foram elas que primeiro chegaram e desbancaram as poluidoras vaporosas.

Andou e andou entre elas, sempre devagar. De vez em quando, subia para uma cabine ou outra. Ficou muito tempo na cabine de uma ALCO S-1 e depois ficou a contemplar uma fila de ALCO RS-1… Quando se deparou com três RS-3 enfileiradas, demorou-se a fitá-las. Elas eram, também, especiais a ele. No mesmo dia em que, quando criança, vira a Biriba, vira, também, a uma RS-3 – estas, apelidadas de canadense. As (MLW-ALCO) RS-3 vieram em grande número para a ferrovia de bitola larga. Eram fracas e, desde sempre, apenas requisitadas para serviço leves. Por isso, por aqueles dias, ainda tinham bastante emprego nas ferrovias. Tais antigas locomotivas, consideradas de médio porte, no padrão americano, “sobreviveram”, então, tanto por… (CONTINUA).

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