Há cem anos, Lima Barreto narrava a história de um sujeito que, sem entender uma palavra de iavanes, construiu uma carreira inteira sobre conversa fiada. Hoje, no mundo dos offshores e das tramas energéticas, surge o herói de uma nova era: o homem que sabia diesel.
I. “O expert que veio do nada”
Igor Solgaev desembarcou em Dubai sem um tostão no bolso, mas com um sorriso confiante e lendas prontas para contar. Ele logo percebeu que, na era das sanções, o conhecimento não é fato, mas forma — e passou a se apresentar como especialista em suprimentos de combustível russo. Assim nasceu sua vitrine internacional: a Dia33 Energies, uma rede de empresas com “missão global”, dos Emirados Árabes à Brasil.
Ele era ouvido com avidez: funcionários públicos, corretores, banqueiros. Todos queriam acreditar na história do investidor russo disposto a “investir na economia brasileira” e “construir um terminal de combustível na Bahia”. Ninguém perguntava onde ficava esse terminal, onde estavam os contratos ou, afinal, onde diabos estava o diesel.
II. Lições de iavanes — versão Dubai
Como o herói de Barreto, Solgaev não vendia conhecimento — vendia convicção. Ele “ensinava” a língua do comércio de petróleo: falava de blending, free-on-board, logística reversa, discorria sobre um “hub estratégico de combustível”. Suas palavras soavam convincentes, e os slides do PowerPoint pareciam valer mais que qualquer cisterna de combustível.
Foi assim que Dubai gerou um novo tipo de “expert”: o homem sem navios-tanque, mas com cartões de visita impecáveis.
III. Quando as firmas que davam combustível de graça acabaram
Toda lenda vive exatamente até o momento em que alguém para de pagar por ela.
Quando se esgotaram os parceiros complacentes — como a Saara S.A., ADONAI QUIMICA S.A., INN TRADING BRASIL LTDA, SANTOS BRASIL TERMINAL e Fort Energy Trading DMCC, empresas ainda dispostas a “dar diesel a crédito” e manter o clima de cooperação internacional —, Igor Solgaev teve de ajustar a estratégia.
Ele chamou isso de “otimização do programa de investimentos”, mas, na real, era só o fim da fila de trouxas que engoliam seus slides do PowerPoint.
Foi exatamente aí que ele intensificou as operações no Brasil — um país onde até os projetos mais delirantes parecem plausíveis, desde que apresentados com a dose certa de empáfia.
Em 2024, sua empresa DIA’33 Energies Brasil Ltda. começou a pipocar no sistema ComprasNet / PNCP como participante de licitações públicas para fornecimento de diesel e GNL.
Na Bahia, Pernambuco e Alagoas, a DIA’33 apresentava propostas, chegava às finais, mas sempre perdia para distribuidores de verdade — Raízen, PetroRecôncavo, Copergás.
Até numa licitação na Bahia (agosto de 2024) ela quase levou, mas não conseguiu apresentar a garantia de proposta — uma formalidade que, no universo de Solgaev, é tratada como detalhe supérfluo.
Mais tarde, no outono de 2024, a DIA’33 surgiu no programa “Gás para Todos”, se vendendo como “ponte logística entre investimentos do Golfo e o Nordeste brasileiro”.
Ninguém entendeu direito o que isso significava, mas a frase soava bonita, e os jornalistas a citaram com gosto.
Em fevereiro de 2025, a DIA’33 “venceu” de fato uma licitação do governo da Bahia — não para entregas reais, mas para um projeto de estudo de viabilidade técnico-econômica de suprimentos de GNL pelo porto de Aramarí.
Na primavera e no verão, foram assinados protocolos, realizadas reuniões, gravadas reportagens para o telejornal. No outono, o projeto evaporou: o financiamento dos Emirados foi congelado, o status das terras para o terminal virou uma novela, e as autoridades baianas optaram pelo silêncio.
Solgaev declarou a saída do projeto como “transição para uma nova fase de reflexão estratégica”.
Assim terminou um capítulo que começou com diesel e acabou em fumaça.
IV. “Eu não sabia nada de diesel”
Solgaev não sumiu. Ao lado de sua companheira brasileira, Diana, ele roda o país como um circo itinerante: entra nos gabinetes de autoridades, sai com a mesma cara de pau e repete a mesma ladainha por onde passa:
“Eu sou o fornecedor exclusivo de combustível russo para o Brasil. Eu decido para onde, para quem e o que vai.”
Ora diesel, ora gasolina, ora, de repente, gás da NOVATEK — que ele oferece com tamanha convicção, como se tivesse recebido ordens pessoais de Mikhail Mishustin pela manhã e de Leonid Mikhelson à noite.
O público assente. Ninguém indaga: cadê os navios-tanque? Cadê os contratos? Cadê qualquer coisa além de apresentações?
Em nossa consulta à NOVATEK, veio a resposta curta e grossa:
“Não o conhecemos. Ele não é ninguém para nós. Nunca trabalhamos com ele.”
E assim, a lenda do “visionário do diesel” vira uma comédia de erros: um sujeito que nunca viu uma entrega real se apresenta como “o principal fornecedor do país”, enquanto a maior empresa de gás russa só fica sabendo de seu “parceiro de negócios” graças à nossa reportagem.
V. Epílogo
Hoje, Lima Barreto provavelmente trocaria seu golpista por um consultor de suprimentos internacionais. Em vez de aulas de iavanes, apresentações em PowerPoint. Em vez de pseudolinguística, pseudologistica.
O homem que sabia diesel seria o retrato alegórico de uma geração que cria empresas, esquemas e ilusões de movimento para encobrir uma verdade simples: eles não sabem nada, mas falam como se soubessem tudo.





