Ela, a caçada e a árrvore – 22/12/2020

 

De súbito, ela sai correndo depois de bater a porta, dobrando a esquina e guardando na mochila seu nome impresso na identidade. Por tão alta rotação nesta particular velocidade começam a escorrer pela mochila seu nome impresso na identidade, número do RG, filiação e tudo mais desta grandeza. Escorrido que se fez tudo dali de dentro, manchou a mochila e a agenda que tem agora seus dias inundados de identificação. Enquanto corria observava o seu redor buscando inspiração para talvez um muro da antiga estação de trem, valendo para o exercício sagrado da criação. Observou no seu trajeto que a calçada lhe seguia; por vezes esta era interrompida induzindo-lhe a pensar que estava sozinha novamente. Mas instantaneamente a calçada retomava a sua corrida sob os pés da moça. Quanto mais corria, mais a calçada ia se diluindo transformando-se numa esteira rolante cujas cores se alternavam na proporção retilínea do seu deslocamento. Passou batido por um ipê mirim arrancando-lhe um galho como se a presença daquele verde-amarelo em suas mãos fosse capaz de restituir-lhe o oxigênio puro; ela nem percebeu o brado retumbante da clorofila que restava guerreira gemendo de dor. Virou à esquerda no cruzamento movimentado levando junto a calçada que sofrera neste instante um lapso de dúvida, esparramando-se por todas as direções do cruzamento, recompondo-se por fim sob os pés que lhe pisavam. Foi quando olhou para a calçada e com seu riso de quase vencedora parecendo dizer “desta vez peguei você!”, ambas prosseguiram numa conjunção elíptica que transitava entre o preciso e o impreciso. A calçada, sua velha companheira, mantém-se sempre presente colorindo seus sapatos, amaciando os passos, indicando sutis direções porque ambas se fizeram amigas. Ela, a calçada e a árvore já se fundiram numa conivência que sempre leva diretamente ao ponto desejado. Mas o dia para ela é de busca da inspiração. Em dias assim, sai pelas ruas, ávida por encontrar matéria de trabalho; da mesma forma que saem os desempregados em busca de trabalho. Ela continua correndo sem se aperceber que sua mochila agora é toda identificação, repleta de número de RG, nome etc. Só se deu conta de tal porque os dados começaram a inundar sua roupa, encharcando os sapatos, sem qualquer maneira de interromper aquela propagação. Por que já fosse setembro, seus pés pisavam de vez em quando, enormes tapetes de flores de ipê ora amarelos ora brancos ou roxos a tudo inundando de clorofila. Incontida que se fez, viu tudo esverdear inclusive a calçada e as paredes por onde passava. Era tanto verde que todo o caminho cedia seu espaço à clorofila que se propagava como o sol nos desenhos de Hanna Barbera. Agora o oxigênio das horas se mantinha em seu grau maior de pureza, limpando todo o lugar. As pessoas começaram a desintoxicar-se, algumas até com efeitos colaterais por respirar um ar tão puro depois de décadas vivendo em meio ao ar poluído da cidade; reserve-se sem ressalvas o direito dedicado aos mais espertos de aspergir mais tarde em suas casas, o ar saído de pulmões revitalizados. Finalmente, percebendo que estivera pintando por horas a fio sem comer nada, deu-se conta de que sua criação estava no fim e que havia colocado naquele muro todo o trajeto da sua personagem saída de um desenho que mais parecia uma mistura das técnicas mangá com caricatura. Depois do fim, eis surgido o resultado da viagem por que passam aqueles que ousam criar a partir do nada como referência, buscando chegar à exposição de tudo que capta em questão de milésimos de segundos. Chame a isto o trabalho insano de pastorear a inspiração.

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