Uma história deste e de outros mundos

Monologo dedicado ao meu amigo, teatrólogo Homero Faria.

Apresentação
( Muita luz, música barulhenta, rufar de tambores e um grande vídeo)
Homero – Respeitável público: Esta noite o Teatro Popular Guignol apresenta para vocês, privilegiados, mais um espetáculo de paixão, vida e morte. Afinal de contas na nossa vida não passamos de marionetes no que chamamos de existência. Pra lá e pra cá, estamos sempre no caminho dos deuses, que nos levam neste imenso caudal. O teatro focaliza todos estes momentos, sejam de alegria ou de dor. Em antigas civilizações homens, mulheres e crianças, assustados com catástrofes corriam e se escondiam não nas igrejas, mas nos teatros Para seu maior deleite aproveitem-se do que lhe oferecemos neste espetáculo. Chorem, riam, nesta catarse da vida humana. Malabaristas, comediantes e divas lhes contarão uma história, que com certeza poderá ser a do senhor, da senhora, senhorita ou lindos mancebos. Preparem-se para estes momentos. Nosso telão vai se fechar agora para mais esta representação. Entreguem sua mente e coração para esta vivência. Nosso espetáculo vai começar!
Criação ( Palco obscurecido, doce música)
Homero: Minha mãe, Das Dores, era uma mulher muito bonita, todos diziam e morava numa grande fazenda de café. De vestido de chita, cabelos desgrenhados, pés no chão, se entregava aos preceitos da Mãe Natureza, ora nos campos verdes, ora nas águas tépidas dos riachos e escalando os galhos da árvores. Até o dia que se entregou a uma grande paixão, por um homem que a possuiu na escuridão dos porões do grande casarão, sede, onde todos viviam, em um conluio ou promiscuidade. Momentos que a levaram pelos quatro cantos do Universo, fazendo de seu corpo um instrumento mais afiado do que qualquer ancinho ou faca. Via estrelas a brilhar durante o dia e músicas inebriantes. Todo seu corpo vibrava neste contato com outro ser que a enlaçava. Entregava-se de corpo e alma a esta grande aventura. Sentia que, até que prove o contrário, o verdadeiro amor é um ato de entrega. Doce submissão…
Nascimento ( Palco semi-obscurecido, uma área italiana)
Homero: Vim ao mundo numa sexta-feira, 13, quando os olhos dos gatos negros brilhavam na escuridão. Não vim quietinho, mas de forma atabalhoada. No atraso de Eulália, renomada parteira, fui lançado fora do corpo de Das dores, num misto de sangue e fezes, assustando as mucamas que assistiram atônitas bater com a cabeça no chão de barro batido. Chorava como se alguma força estranha tentasse impedir minha vinda para este mundinho que chamavam de Deus. Era um choro gritante que do fundo da alma se projetava nas paredes encardidas, provocava lágrimas em Das Dores e ressoava no meio da animália, por todos os recantos da propriedade.Puseram um crucifixo de madeira nas mãos de Das Dores, para que sobrevivesse a tanta violência e um cordão com a imagem de Nossa Senhora do Carmo sobre meu corpinho, antes mesmo de cortar o cordão umbilical, pois todos achavam que aquele ser tinha parte com o Cão. E rezaram muito, o que fez, que pudesse agora estar entre os mortais…
Infância( Palco, aberto, falando diretamente para a plateia)
Homero: Nos meus tenros anos, apegado a Das Dores, me descobri côxo, manquitola. Arrastava-me pelo casarão, sobre os olhares desconfiados de Deoclécio, me pai. Queria falar, gritar, mas de minha boca só saiam grunhidos. Não fui batizado e não me levavam a pequena capela dedicada a Nossa Senhora da Conceição para as missas mensais. Das Dores, bela que era, foi perdendo cabelos e dentes, se enfeiando. Mas, mas ela me ensinou a ler e escrever, numa bela cartilha de capa azul. Com os pivetes, filhos dos escravos, aprendi a jogar finco, pique esconde e me divertia espetando as tanajuras que apareciam aos borbotões depois das chuvas. Um triste dia, o horripilante homens em que se transformara Deoclécio descobriu que eunão era seu filho mas fruto fortuito da paixão de Das Dores, por um frei itinerante, que por lá estivera numa Semana Santa. Furioso, babando, descarregou as balas de uma espingarda em minha mãe, pela traição. Depois, cortou-lhe o corpo em pedaços, salgou-os e jogou-os aos porcos. Homem poderoso, nunca foi julgado. E se fosse levado as barras de um tribunal seria inocentado pois apenas lavara sua alma, num crime de honra. E sempre julguei que seria sua próxima vítima…
Adolescência (Palco aberto, música sacra)
Homero: Manquitolei perdido de Deus, sozinho e entregue aos meus ódios e amarguras, até o dia, em que não sei como, Eufrásia, mãe de Deoclécio, convenceu a criatura dos quintos dos infernos a enviar-me para um internato bem longe de casa. Vingativo, Deoclécio, que vivia bêbado, pançudo e o rostos cheio de bexigas, sempre atrás das negrinhas que viviam na casa, acabou por aceitar. Escolheu um lugar bem longe, ligado a Igreja Católica Romana. Colocou-me encarapitado numa mulinha de pouco valor e depois no trem de ferro. Nem bem cheguei, esfomeado, e fui recebido por Frei Anastácio, baixinho e com uma grande pança. Olhando-me pela cangalha de óculos funo de garrafa. Interrogou-se havia sido batizado, crismado, se sabia os pecados capitais e diante da minha negativa tomou um crucifixo de metal, encostou-o no meu rosto e rezou com voz rouca :Exorcizo te, omnis spiritus immunde, in nomine Dei Patris omnipotentis, et in noimine Jesu Christi Filii ejus, Domini et Judicis nostri, et in virtute Spiritus Sancti, ut descedas ab hoc plasmate Dei ,  quod Dominus noster ad templum sanctum suum vocare dignatus est, ut fiat templum Dei vivi, et Spiritus Sanctus habitet in eo. Per eumdem Christum Dominum nostrum, qui venturus est judicare vivos et mortuos, et saeculum per ignem. Foi assim por muito tempo. Rezas sem fim, grossos livros de estudo com cheiro de mofo. Havia uma chusma de garotos que me perseguiam. Eu era sua vitíma predileta e viviam a me cercar em cantos escuro. Porém, o que mais lembrava era de um galinho garnisé que cantava dia e noite, assombrando a todos. Nossa comida era feita com entranhas de animais doados pelos paroquianos, miúdos como o fígado, moelas e outras tranqueiras. Até que peguei o galinho garnisé e torci seu pescoço de um só golpe. Eu mesmo o preparei, depenando e o assei numa fogueirinha. Corria também de Donana, uma lavadeira gorda, de rosto avermelhado, que vivia atrás de garotos como eu. O tempo passou e um dia dei a Frei Anastácio uma sopa temperada com ervas venenosas. Ele virou os olhos, estrebuchou e caiu mortinho da silva aos meus pés . Coitado, disseram todos, o homem de Deus havia caminhado para o Céu. Fiquei naquele lugar até que as roupas não cabiam mais no corpo. Pela primeira vez, em muitos anos, Deoclécio enviou um amarra cachorro chamado Raimundo me buscar e levar pra fazenda. Nada mais me ligava aquele lugar do demônio, pois Eufrásia, com cento e poucos anos se entregou aos anjos. Ficava a imaginar Deoclécio caído numa cadeira de balanço, uma botija aguardente sempre as mãos, falando coisas desencontradas. Foi quando enjoei da minha vidinha e dei-lhe uma foiçada na cabeça. E fugi de lá, no seu cavalo baio.
Adulto ( Muita luz e música de boleros em BG)
Cai no mundo e de tudo fiz um pouco. Andava perdido pelas ruas da grande cidade e um encanto sem tamanho caia sobre mim. Andei léguas sem fim, dormindo nas praças e debaixo da marquise dos prédios. Até que encostado numa parede conheci uma bela mulher, loura como os cabelos das espigas de milho. Ela me acolheu, banhou, cortou meus cabelos, vestiu-me numa bela fatiota e me levou para seu pequeno, mas luxuoso apartamento na Avenida São João. Descobri então que se tratava de Célia, estrela do Teatro Santana e uma linda beldade.
Tu és a criatura mais linda
Que os meus olhos já viram
Tu tens a boca mais linda
Que a minha boca beijou…
São meus os teus lábios
Esses lábios
Que os meus desejos mataram
São minhas tuas mãos
Essas mãos
Que as minhas mãos afagaram…
Sou louco por ti
Eu sofro por ti
Te amo em segredo
Adoro o teu corpo divino
Que pelas mãos do destino
A mim tu viestes…
Tenho ciúme do sol
Do luar e do mar
Tenho ciúme de tudo
Tenho ciúme até
Da roupa
Que tu vestes…
Garçom!
Olhe pelo espelho
A dama de vermelho
Que vai se levantar
Note que até a orquestra

Fica toda em festa
Quando ela sai para dançar
Essa dama já me pertenceu
E o culpado fui eu
Da separação
Hoje choro de ciúme
Ciúme até do perfume
Que ela deixa no salão…
Garçom amigo
Apague a luz da minha mesa
Eu não quero que ela note
Em mim tanta tristeza
Traga mais uma garrafa
Hoje vou embriagar-me
Quero dormir para não ver
Outro homem te abraçar…
Veja só
Que tolice nós dois
Brigarmos tanto assim
Se depois
Vamos nós a sorrir
Ficar de bem no fim
Para quê?
Maltratarmos o amor
O amor não se maltrata, não
Para quê?
Se essa gente o que quer
É ver nossa separação
Brigo eu, você briga também
Por coisas tão banais
E o amor em momentos assim
Morre um pouquinho mais
E ao morrer
Então é que se vê
Que quem morreu
Fui eu e foi você
Pois sem amor
Estamos sós
Morremos nós!
Me encharcava de conhaque e ia todas as noites acompanhar Célia em suas apresentações na coxia do teatro. Sentia um mal estar quando ela se despia e os homens na fila do gargarejo se masturbavam por ela, linda princesa, luar na minha vida escura. Depois ela me ensinava as práticas do amor por entre lindos dosséis. Pensava que tudo mudara e me sentia como dono da noite. Tornei-me rufião conhecido no pedaço e comprei uma navalha Solingen, com a qual me impunha no pedaço contra todos os fanfarrões. Ela permitiu que eu fosse cafetão das mais belas mulheres. Um belo dia seus olhos de gata se voltaram para um político canastrão e tudo entre nós. Bebi tonéis de conhaque, me enlameei na frustração e na tristeza até me atirar. Mas, meu destino era marcado pela boemia voltei a frequentar bares e botecos de quinta categoria. Até me encontrar com Saulo, um homem muito elegante e devasso, alto funcionário de um banco na Paulicéia Desvairada. Amei-o como não amei Célia e me entreguei aos seus beijos libidinosos e abraços calientes. Por suas mãos fui trabalhar num grande armazém de secos e molhados. Fiz sucesso e cresci na minha vida de pobretão. Foi quando a marvada me perseguiu novamente. Saulo morreu de uma hora para outro e sua família, mulher, filhos e genros me escorraçaram do conforto de nosso ninho de amor… Sua herança para mim fincou pé numa grande saudade. Continuei a trabalhar e beber conhaque, não necessariamente nesta ordem, envolvendo-me como mulheres e crianças. Acabei por amealhar uma pequena fortuna que crescia na agiotagem e na lâmina fria da Solingen. Acabei dono de uma rede de estabelecimentos de secos e molhados. Mas, não deixava de frequentar a noite, arrebanhando moçoilas devassas, rapazotes imberbes e outros tantos animais perdidos neste mundo. Pois viver é uma grande e eterna aventura…
Velhice ( Palco semi obscurecido, tic-tac de um relógio)
Homero: Caminhava na noite paulistana, me encharcando de conhaque de nenhuma categoria, a cabeça meio vazia e as pessoas dizendo que o “deixa que chuto” chegara, efusivos. Amigos entre aspas, todos interessados em surrupiar-me algo, material ou espiritual…Resolvi fazer as malas e voltar no passado, começando pelo Instituto Educacional Coração de Jesus. Aparentemente tudo havia mudado desde o advento da “Mater et Magistra” de João XXIII. O ar sombrio havia desaparecido e o ar que se respirava não era tão pesado como outrora. Pura ilusão, pois como em todas as religiões queriam apenas nos dominar, abrir nossas mentes e colocar ali suas ideias tortas da existência humana e do imponderável. Uma verdadeira fábrica de autônomos, como sempre, debaixo de uma grande foto do ignominioso Frei Anastácio. Requiescat in pace! Peguei um carro de praça e nos dirigimos para a Fazenda Capã Grande, onde nascera. Abandonada a casa grande estava caindo aos pedaços e os moveis haviam sido levados por vândalos e ladrões. Tarde da noite ouviu o gargalhar e o choro de Das Dores, a fala mansa de Eufrásia. E os gritos lancinantes de Deoclécio, que de garrafa na mão se arrastava pelos cômodos, o corpo coberto de bexigas e a cabeça fendida pela lâmina do ancinho. Pensei que tudo que é desconhecido é tido por magnífico. A imaginação sente-se fascinada pelo desconhecido. Garrafa de conhaque na mão, deitei-me no chão coberto de tábuas malcheirosa, na ciranda macabra de meus mortos. Dia seguinte, cabeça inchada, fiz ao proprietário uma oferta irrecusável. Coloquei uma cama simples, patente uma mesa de pinho e uma cristaleira vagabunda. E uma prateleira com muitas garrafas de conhaque Presidente. E me entreguei dia e noite a ouvir o cocoricó de um imaginário galinho garnisé…
Morte ( Palco as escuras, música de Villa Lobos)
O preço do amor é imponderável! E o da morte mais ainda. Caminhava pela fazenda e ao saltar sobre um ribeirão caí com o rosto na tênue lâmina de água e me afoguei. Foi um desfalecimento anestesiado pela bebida. Tentava me mexer mas não alcançava sucesso. “Menininho, dorme tranquilo”, dia minha avó Eufrasia. O que é a morte? Apenas uma passagem para um novo mundo, amparado por muitos anjos…
Ressurreição ( Vídeo com o apresentador do Teatro Popular Guignol)
Homero: Num tempo que não poderia ser medido, nosso personagem acordou entre pessoas que amava e outros que detestava. Célia, Das Dores e Eufrásia lhe cantavam canções de ninar envolventes. Qual a diferença entre o Bem e o Mal, pensava. Olhava para o próprio corpo e não se enxergava mais como deficiente físico. Era um homem belo, sem mágoa e rancores. Esta é história deste de de outros mundos que trazemos para vocês. Mostramos que somos todos marionetes a mercê do destino. Vão todos para casa, espectadores e de tudo que viram e ouviram guardem uma lição. De um ser que se entregou as taças de vinho da condição humana e que renasceu em várias existências. Boa noite! Arriverdeci!

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