Ruminanças

Aquele sábado amanheceu friorento.

Uma névoa densa empanava-me os olhos. Mal se viam dez metros adiante.

Assim que botei os olhos na minha rocinha prejuizenta, agora em mãos expertas de um amigo velho, dei de olhos na vacada de bucho cheio. Eram quase sete horas da manhã. De uma manhã de sábado, finado maio, quase início de junho.

Antes de passar ao meu caso é bom esclarecer alguns pontos.

Hoje, depois de anos tentando dar murro em ponta de faca, fazendo de conta que sou fazendeiro, resolvi arrendar parte do meu sonho. Deixei a roça em mãos de quem entende. Agora apenas aqui venho em visitas rápidas. Para não deixar os sonhos morrerem de velhos. E a saudade cavoucar o fundo do peito.

Ao estacionar a caminhoneta defronte a casa amarelazul percebi algumas vacas ruminando.

Roberto, hoje responsável por cuidar do meu sonho, veio apressado estreitar a mão do amigo velho.

Como de hábito as tarefas que espreitam aqueles que cuidam das tarefas campestres não dão trégua como à gente da cidade.

Nem bem o relógio do orvalho aponta, de rosto molhado, quatro horas da manhã, o retireiro desperta como no dia anterior.

O café ainda não fumega na trempe do fogão à lenha. A mulher ainda não acordou de uma noite mal dormida, pensando nos filhos longe, em busca de emprego, já que na roça não têm futuro.

Sozinho, com a esperança adormecida, Roberto junta a vacada desaparecida em meio à cerração densa, mal se deixando ver, somente vultos sombrios, emergindo da escuridão da madrugada fria.

Para economizar energia deixa a ordenhadeira de lado. Com os dedos duros e frios espreme as tetas das vacas, dali tirando o sustento do mês, do ano, da vida.

São mais de duzentos litros de leite purinho, que são arrebanhados horas depois pelo caminhão da cooperativa.

As seis da matina as vacas se fartam de silagem de milho, alimento que lhe custou os olhos da cara, o suor do seu rosto, as economias de uma vida sofrida.

As oito, afinal, ainda com os olhos embaciados de sono toma o café acabado de sair do fogão, junto a uma broa de milho, feita na semana passada, e um naco de queijo mofado, um resto de rosca que comprou na cidade.

Incontáveis tarefas o esperam na rotina diária.

Remendar a cerca dos fundos da propriedade, roçar o pasto sujo de pragas, banhar o gado cheio de carrapatos, apartar a bezerrada que resistiu à estiagem prolongada.

Ao fim do mês, quando recebe o pago do leite, percebe, estupefato, que a importância não cobriu as contas da ração, da semente do milho, do adubo que virou terra.

Assim passam os meses, os anos, recheados de desenganos, de esperanças mortas.

Naquele sábado da visita à minha rocinha prejuizenta, ao estacionar a caminhoneta perto da porteira, ao ver a vacada de pêlo luzidio, ruminando o alimento, foi que acabei ruminando estes pensamentos.

Vivemos num país cheio de contrastes. As diferenças nos causam assombro.

Enquanto a maioria trabalha, de sol ao cair da lua, outros se locupletam do povo, gananciosos, safados, cobrando propinas, corrompendo outros, embolsando quantias robustas, engordando contas fantasmas, que não são contabilizadas pelas estatísticas de quem paga imposto.

Enquanto o amigo Roberto coleciona calos nas mãos, noites insones, dívidas, alguns políticos colecionam carrões, aviões, iates, viagens internacionais, tudo pago às custas dos impostos, que não retornam jamais.

A vaca de pêlo luzidio ruminava. E eu ruminava junto a ela, pensando nas desigualdades sociais.

Na vida dura de quem trabalha na roça. Nas desventuras do trabalhador citadino, nas agruras dos pais de família, no desemprego que ronda mais e mais, na crise que escancara a boca, deixando a banguelice com fome.

Deixei a roça ruminando, como a vaca rumina, de como seria bom se as coisas mudassem.

Como seria bom se o país tomasse jeito! Se a classe que nos governa pensasse no homem do campo. Nos professores, nos profissionais de saúde, no povo, na gente, e menos nos seus rabos tortos e ambições desmedidas e inconvenientes…

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