Acabei por vestir a carapuça da idade

Hoje, ao descer a rua com o sol mostrando a cara pálida, recém saído de entre nuvens escuras, com o corpo alquebrado por uma virose renhida, acabei por filosofar sobre a velhice, a juventude, a meninice, a morte, o fim, o meio.

Aos pouco mais de 65 anos não me sinto velho. Talvez gasto, dias em que acordo cansado, pensando na vida vivida até então, entremeada de momentos felizes, outros nem tanto, na mesmice enfadonha da rotina diária.

Procuro ludibriar a idade provecta mantendo o corpo em movimento.

Evito andar de carro. Dou trabalho enorme ao par de muletas feitas de músculos, tendões, ossos fortes, exercitando o corpo inteiro, que por sobre elas se equilibra, nas minhas andanças diárias.

Não tenho vícios maiores. A não ser escrever, antes mais, hoje menos, a procura de temas do cotidiano, que para mim significam fontes inesgotáveis de crônicas.

Como separar, da mesma forma que o joio do trigo, ser velho, quase idoso, adulto em vias de mudar de idade, assim quando o jovem deixa de ser menino, da senilitude completa, da decrepitude que a morte cura, atenua as suas dores, sofrimento, desatino?

Os limites entre uns e outros são tênues como a sanidade e a loucura.

Um indivíduo pode ser rotulado de velho aos quarenta anos, em contrapartida que outro, aos oitenta, continua no semblante a mostrar sinais de jovialidade.

Sentir-se velho depende de uma série de fatores. Aí, nesse contexto, deve-se evitar contrariedades, ter uma vida saudável, fazer o que aprecia, mesmo quando aparentemente impossível, procurando em tudo a felicidade. Mesmo que ela não se mostre por inteiro. Apenas uma nesga suave de sua cara risonha.

Aos 65 anos não me sentia velho. As forças nunca me abandonaram.

A não ser uma gripe mal curada, uma insônia persistente, uma fadiga inconsequente, coisas da idade.

A lida da Urologia tem me gratificado como sempre. Principalmente, pois ela trata, na maioria das vezes, de idosos.

Assentado à minha cadeira assisto a um rosário de queixas. Vindas de pessoas com mais idade que a minha, muitas parecem mais. Ou menos.

Quando aparece um jovenzinho à minha procura dedico a ele os meus conhecimentos de velho. Quando chega a vez de um velho, dele procuro absorver a experiência que os muitos anos lhe deram.

Todos eles, sejam jovens, adultos em vias de mudar a carteira de identidade, sejam seniores, sejam decrépitos anciãos, me ensinam muito. Sobretudo a ter paciência frente às suas limitações.

De pouco fui transferido, na lida do serviço público, no exercício da medicina, a outra unidade de saúde.

A unidade de atendimento fica situada em outro extremo da cidade. Precisamente na Zona Norte, diametralmente oposta de onde moro.

Como tenho o costume de andar sempre a pé, hábito que pretendo cultivar como flores, a princípio pensei como proceder.

Pedir carona nem sempre é possível. Ir de taxi, jamais.

Foi quando descobri uma das prerrogativas de estar passado da idade.

A partir dos 65 janeiros o idoso tem direito a uma carteirinha de aposentado. Coisa que nunca me passou pelos miolos.

Andar de ônibus nunca fez parte da minha mocidade. A não ser em percursos longos, entre cidades. Muito menos da precariedade da idade em que me encontro agora.

Logo cuidei de arranjar tal documento. Foi fácil, e rápido.

A primeira vez que dei expediente na tal unidade de saúde da Zona Norte a espera não foi tão longa quanto imaginava. O ônibus apareceu pontualmente com um atraso de alguns minutos apenas.

Uma fila pequena de idosos, como eu, esperava pacienciosamente a sua vez.

Hoje, já acostumado à nova rotina, depois do atendimento matinal limitado naquela unidade de saúde, onde os velhos têm preferência, ainda ensimesmado com a idade, sem saber quão velho era eu, apesar de me sentir na fina flor da mocidade, um tanto gasto por uma gripinha marota, uma dor no corpo incômoda, nada mais fruto da virose respiratória, entrei no ônibus pela porta da frente.

Antes de mim duas senhoras bem mais velhas. Uma delas parecia ser minha avó falecida. Outra, a minha mãe, que Deus a tenha.

Ajudei as duas a subirem pelo degrau alto do velho ônibus circular.

Deixei-as comodamente assentadas no banco da frente.

Só então procurei na carteira aquela carteirinha de aposentado. A que me faculta o transporte gratuito, coisas da idade.

O trocador já me conhecia.

As duas senhoras idosas, não.

Para puxar conversa, antes que o “busão” partisse, aos trancos e solavancos, dirigi a uma das idosas, a que poderia ser minha avó, a seguinte pergunta: “Como vai a senhora”?

Foi então que ela respondeu, com ar de troça: “Eu tô como o senhor. De mal a pior”…

Foi quando, nesse exato instante, acabei, finalmente, a vestir por completo a carapuça da idade provecta…

Mesmo assim sou feliz, até que a morte me separe daqui, da minha terra.

 

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